domingo, 29 de maio de 2011

Sobre novas histórias e mesmas lembranças




É tão bom quando você vem me ver. Os dias passam e sempre me lembro de umas histórias. Tenho outras novas pra lhe contar. É bem verdade que de muito pouco já recordo. Se vez por outra chego às mesmas de sempre, não me entenda mal, algumas histórias não me deixam a mente. E as memórias se confundem, umas passeiam pelas outras, insistem em me enganar. Já tinha até esquecido o quanto você cresceu. Em alguns momentos o tempo passa lento, como se estivesse a me analisar; em outros, tão depressa, que décadas se dissolvem em horas. É como se semana passada tivesse lhe embalado em meus braços, ouvindo sua mãe falar para eu tomar cuidado, que eu já não tinha mais força para isso. A verdade é que as minhas mãos já rateavam, um ou dois copos já tinham me escapado, cacos de vidro pelo chão, mas você eu jamais deixaria cair. Ela morreu e lá se vão dois anos. Ou foram vinte? E só agora me dei conta que não era você; foi seu filho que eu estive a embalar semana passada. Verdade, o tempo não foi generoso comigo, ele achou graça fazer de mim um velho fraco, bobo. Mas parece que com você ele anda de bem, você está até mais novo. E agora percebo que a idade não me bagunçou só a memória, a visão também já não procura os detalhes como antigamente. Tanto que nunca tinha reparado nos brincos que você usa. E quando foi mesmo que você fez essas tatuagens? Eu nunca gostei de tatuagens. Elas marcam o corpo para sempre. Juro que não entendo você, filho. Passou a vida toda dizendo que jamais faria uma tatuagem, até quis expulsar meu neto de casa quando ele fez uma no braço. Agora você me aparece com uma idêntica à dele e no mesmo lugar. E me desculpe se estou falando neste tom, é que só agora me dei conta que você não é o meu filho, é meu neto, o da tatuagem. Mas e o que eu estive a embalar semana passada, quem era então? É que as informações recentes me vão embora com a mesma velocidade da morte que me vem chegando. E assim, dos bisnetos só restam lapsos. Dos nomes, nem o vulto. E por falar em nomes, qual é mesmo o seu? Ainda é cedo, não vá! Tinha algo a lhe dizer, mas me foge à lembrança. Por aqui tudo é tão triste; não queria ficar aqui sozinho. Filho, não vá. Eu já lhe falei do quanto você cresceu?! Era como se fosse semana passada; você nos meus braços e sua mãe dizendo pra eu tomar cuidado...Filho, por favor, não vá.